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SOBRE

Em 1947, a Radiodifusão Francesa encomendou a Artaud uma peça para o programa "Voix des Poètes". Reaparecido após anos de internamento psiquiátrico, lembrado como surrealista desavindo, actor invulgar e convicto proponente de um teatro ritualista e curativo, Artaud juntou alguns actores amigos e gravou o que veio a descrever como "(...) uma nova obra que capte certos aspectos orgânicos da vida, uma obra/ em que se sinta todo o sistema nervoso arder como uma lâmpada incandescente/ com vibrações/ consonância/ que convidem o homem/ A SAIR/ com o seu corpo/ em busca de uma nova estranha e radiante Epifania nos céus (...)". 
Para acabar com o julgamento de Deus é o título dessa impertinência, cuja transmissão foi proibida e que em vida do autor teve apenas duas audições para público restrito. 

A gravação deste texto é um registo absolutamente invulgar, incómodo, certamente, naquilo que contém de herético, quiça visionário, e perturbador pela invulgar sonoplastia, que mescla tambores, xilofones, os gritos e reverberações de um Artaud fisicamente implicado na performance até ao tutano. Numa estranha justaposição de texto perfeitamente articulado, interpretado por actores como Roger Blin e Maria Casares, e de emoção em bruto, este registo configura algumas das preocupações centrais aos seus ensaios e cartas sobre teatro; é purgativo e curativo, ainda que protagonizado por um Artaud alheio já a qualquer possibilidade de salvação. Partimos, pois, de um texto, e da gravação original que conheceu, para recuperar essa figura crítica da reflexão artística e da aproximação dos cânones ocidental e oriental. E queremos fazê-lo nos seus termos, conjugando intuição e técnica, artesania e electrónica. Comum a todos é um desígnio de experimentação, na esteira de influências tão diversas como Luciano Berio, Hermeto Pascoal, Laurie Anderson, Ryoji Ikeda ou Alva Noto. Instalação, concerto para ver, intervenção radiofónica, desejamos um espectáculo que alie a limpidez da palavra e da argumentação a uma pesquisa audiovisual o mais possível desinibida. Chamamos-lhe PARA ACABAR, mas sentimo-lo como um começo.